Sem regra legal, candidaturas coletivas se espalham e viram opção da direita a esquerda

Inovação se converteu em aposta para a eleição municipal, mas embute desafios jurídicos e políticos

SÃO PAULO. ​Há um ano, os habitantes de Afogados da Ingazeira (PE) recebiam a notícia de que a Câmara Municipal poderia ter um tipo incomum de mandato. As moradoras Lena Braz, Cícera do Leite e Maria Alves foram à rádio local anunciar que concorreriam juntas a uma só cadeira, em uma chapa batizada de Unidas.

“Eu tenho o sonho de chegar lá fazendo uma política diferente”, afirma Cícera, que já tentou ser vereadora (sozinha) duas vezes na cidade. Desde a entrevista na rádio, apenas uma continuou com ela: Maria Alves, ou Dinha Merendeira, como vai se apresentar à população. Edja Brito completa o trio, que sairá pelo PSD.

Seis meses após a novidade, outro afogadense revelou aos 30 mil habitantes do lugar que tentaria entrar na disputa com uma campanha nos mesmos moldes. José Barbosa quer uma plataforma que represente os guardas municipais da cidade —mas ainda procura parceiros para a jornada.

Como no município pernambucano, que poderá assistir à competição entre duas candidaturas coletivas, outras localidades de norte a sul caminham para ter na eleição municipal deste ano um número recorde de campanhas para vereador com esse estilo.

As pré-candidaturas se espalham por partidos de diversas orientações ideológicas, desde PSOL, PT e PC do B até MDB e DEM, passando por PDT, Rede Sustentabilidade e PSB. As legendas têm até 26 de setembro para fazer os registros na Justiça Eleitoral.

O formato, que já foi vitorioso em eleições para vereador e deputado estadual desde 2016, consiste em um grupo (geralmente três pessoas ou mais) que faz campanha em conjunto e, caso eleito, assume coletivamente a cadeira. Na urna, aparecem o nome e a foto de apenas um dos integrantes.

 

Essa configuração, no entanto, está fora das previsões legais e das regras do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o que abre margem para questionamentos judiciais. Até agora, não se sabe de nenhum processo do tipo.

O trio de mulheres de Afogados da Ingazeira acredita que, em três, elas têm mais possibilidade de vencer. “Esse modelo aumenta as nossas chances de ganhar e ter mais mulheres na política da cidade”, empolga-se Cícera. Hoje, os 13 vereadores são homens.

Para Barbosa, que tenta montar a outra chapa do município, “uma candidatura coletiva pode atingir mais grupos. Os outros companheiros também têm um grupo familiar, [alcançam] a área onde moram”.

A iniciativa, que começou com três guardas municipais, ainda patina. Se vingar, ela terá uma junção inusitada: Barbosa, ligado aos movimentos social e sindical e ex-filiado ao PT, sairia em uma chapa com um apoiador do presidente Jair Bolsonaro, Roberto de Freitas.

O primeiro diz que as divergências não atrapalhariam. “Não podemos nos fechar em uma ideia só. Se temos um objetivo maior, temos que discutir com pessoas que têm um ponto de vista diferente. Política é isso.” Caso a formação coletiva não dê certo, será Roberto o candidato da causa dos guardas, pelo PSC.

Outra experiência pernambucana — esta na capital, Recife— une três vizinhos da comunidade do Coque: Dimas Francisco, Kátia da Silva e Didiu do Prezeis. Eles querem disputar uma vaga na Câmara pelo DEM.

“Chega prefeito e vereador aqui prometendo várias coisas, e depois não cumpre. Vendo isso, a gente se juntou e falou: ‘Não vamos dar brecha para esses candidatos de fora’. Se acontecer algum problema, fica mais fácil para a comunidade nos cobrar”, afirma.

Especialmente nas legendas do campo progressista, uma tendência parece ser a do uso do formato para agregar pessoas em torno de causas como o feminismo e o antirracismo.

Na capital paulista, o PDT prepara cinco candidaturas coletivas, que se dividem em bandeiras relacionadas a gênero, direitos humanos e território.

Uma delas, a do grupo Periferia É o Centro, reúne nove membros e é encabeçada pelo ativista Jesus dos Santos, que já tem experiência com mandato compartilhado. Ele é um dos integrantes do coletivo eleito em 2018 para a Assembleia Legislativa de São Paulo, hospedado no PSOL.

Lá a titular, para efeitos legais, é a deputada Monica Seixas (PSOL), reconhecida pela Casa como parlamentar. Os outros oito eleitos com ela são chamados informalmente de codeputados.

Agora, Jesus será novamente “cocandidato”. E duas colegas dele no mandato estadual também tentarão vagas na Câmara paulistana, só que individualmente —uma pelo PSOL e outra pela Rede Sustentabilidade.

“A ideia é carregar a vivência parlamentar que adquiri e também dar a outras pessoas a oportunidade de ocupar esses espaços institucionais, levando nossa voz e as pautas das camadas marginalizadas”, diz o pedetista.

O músico e ativista cultural Jesus dos Santos, que é codeputado estadual na “Mandata Ativista” na Assembleia paulista e fará parte de candidatura coletiva pelo PDT na disputa por cadeira na Câmara Municipal de São Paulo – Bruno Santos – 27.fev.2019/Folhapress – Produção Daniela Ribeiro

Outra postulante que não se apresentará só para a disputa por um assento na Câmara de São Paulo será a ex-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) Carina Vitral. Pelo PC do B, ela concorrerá ao lado de outras três mulheres, formando o que batizaram de “bancada feminista”.

Para Carina, a candidatura coletiva evidencia mais as causas do que as pessoas envolvidas. No caso dela e das companheiras, a plataforma de campanha engloba temas como combate ao machismo e defesa da educação.

“É uma maneira de nos diferenciar de quem quer fazer carreira na política. Na história, pessoas são importantes, mas isso não significa que a gente precise ser personalista”, afirma.

Segundo ela —que se candidatou a deputada estadual em 2018, obteve 33 mil votos e ficou na suplência—, potencializar a atração de votos não é a razão maior para ter optado por uma campanha grupal.

“O motivo principal é a força da ideia. Queremos trazer à luz uma coisa diferente, que desperte nos cidadãos a vontade de participar da política. Isso tem mais força do que o raciocínio simplista de que ‘quatro pessoas pedindo voto é melhor que uma’.”

Carina conta que o partido recebeu com bons olhos a proposta. Tanto é que deve replicar a ideia em capitais como Belém, Salvador, Manaus, Porto Alegre, São Luís e Rio de Janeiro. O diagnóstico hoje é o de que legendas à esquerda têm se mostrado mais abertas a candidaturas do gênero.

Nos mandatos coletivos eleitos, em geral os integrantes são nomeados para cargos no gabinete (como assessor ou chefe de gabinete), mas assumem funções mais amplas do que as meramente burocráticas.

Há limitações, no entanto. Como nem a legislação nem os regimentos internos das Casas contemplam a novidade, normalmente só o titular pode votar em plenário, discursar na tribuna e compor comissões.

Além da experiência paulista, outros casos bem-sucedidos que costumam ser mencionados são os dos grupos Juntas, que entrou na Assembleia de Pernambuco, e Muitas, eleito para a Câmara de Belo Horizonte.

“Nossa perspectiva é e sempre foi a da experimentação, da inovação democrática”, afirma Caio Tendolini, membro da Bancada Ativista, movimento que gestou a “Mandata Ativista”, nome do grupo que ocupa o gabinete com Monica. A organização passou os últimos meses recebendo dúvidas e respondendo a perguntas de várias partes do Brasil.

“Vão surgir mil remixes e versões, de direita e de esquerda, de pastor e de sem-teto. Vai ter versão ‘fake’ e outras mais genuínas. As urnas vão julgar se será uma candidatura de verdade”, analisa.

Bancada Ativista

A codeputada Raquel Marques durante audiência pública ao lado da deputada estadual Marina Helou (Rede) Foto: Pedro Maia/Divulgação

Na visão da cientista política Silvana Krause, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, existe uma pitada de marketing atrelada ao interesse pela invenção. “Isso surge no espírito da antipolítica, de buscar vender e fazer uma nova forma de compreensão do que é um mandato”, diz.

A docente considera positiva a possibilidade maior de representação de grupos minoritários dentro de um mandato, mas aponta o risco de enfraquecimento dos partidos, “que já são muito frágeis no Brasil”, como um efeito colateral.

“Não estou desprezando essas iniciativas, só estou chamando a atenção para o cuidado com essa euforia. Porque o mandato já é coletivo, é do partido.”

Silvana lembra que o maior desafio nem é a campanha em si, mas a estruturação coerente do mandato, em caso de vitória. “A proposta assegura que determinados grupos isolados, particularizados, consigam ter uma representação política. Mas o que vem depois? Nada garante [a coletividade do mandato].”

No campo jurídico, o alerta também está ligado. Como a legislação eleitoral não reconhece o arranjo, a campanha precisa ser feita com o dobro de cuidado, para evitar ações de adversários ou mesmo do Ministério Público Eleitoral.

“Na propaganda eleitoral oficial, pode haver questionamento se uma peça for protagonizada por aqueles que não são os candidatos reais. Mas, se eles [cocandidatos] figurarem como meros apoiadores, não há problema”, comenta o advogado Amilton Augusto, especialista em direito eleitoral.

O TSE informou à Folha desconhecer a existência de consultas à corte sobre o assunto e disse que o tema nunca foi debatido entre os ministros.

Por Joelmir Tavares e Daniela Arcanjo

Fonte: Portal do Jornal Folha de São Paulo

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